quarta-feira, 19 de março de 2014

contagem regressiva.

Diferente do esperado, depois de um dia cheio de esperanças e fé renovadas, tivemos uma surpresa. Na quinta, dia 06, cheguei cedo no hospital, como de costume. Fui tentar conversar com o chefe do CTI sobre minha volta ao trabalho e um possível horário alternativo para conversar com os médicos. Ele não estava e fiquei por lá aguardando a visita. Às 14h já estava junto com o papai para entrarmos no CTI.

Como sempre fiz, cheguei no leito dela com um sorriso de orelha a orelha. Em todos esses dias, aprendi (sem saber como, nem com quem) que tinha que estar muito feliz por poder estar ali, dividindo isso com ela, e que ela precisava me ver bem. E era isso que eu queria mostrar pra ela todos os dias: o meu sorriso mais sincero.

Dra Flávia apareceu, vinha da sala dos médicos do CTI, e não tinha uma cara boa. Fui abraçá-la e ela disse "Bru, você precisa ser forte. Sua mãe deu uma piorada. Teve uma parada cardíaca de meia hora hoje cedo e quase não conseguiram fazê-la voltar". Não sei definir minha reação. Não faço ideia de como deve ter sido a minha cara. Mas pra mim ela permanecia ali "bem", como antes.

Não contei pro meu pai. Esperei que a Dra Milena, intensivista do dia, contasse tudo pra nós dois juntos. Deixei que ele ficasse com a mamãe bem, sem aquele peso ou aquele medo que eu tinha. Ele não merecia.

Dra Milena nos chamou pra conversar e contou sobre a parada cardíaca. Por meia hora ela insistiu que a mamãe permanecesse ali pra nos encontrar na hora da visita. Nos disse pra aproveitarmos o máximo possível, pois uma nova parada ela não suportaria. Mamãe "voltou" com muita droga pra manter a pressão. Ficamos desolados.

Voltamos às 18h, pois a Dra Milena deixou que passássemos mais tempo com ela, pra aproveitarmos tudo. Nessa hora, ela comentou que mamãe permanecia estável, sem nenhuma nova intercorrência. Voltamos pra casa um pouco mais tranquilos, mas a sensação que a qualquer momento o telefone poderia tocar era cruel.

A previsão era que na sexta ela fizesse a traqueostomia e mais uma lavagem abdominal, que foram suspensas. Mamãe não tinha condição clínica para suportar qualquer intervenção cirúrgica. O fígado apresentou sinais de falência e os olhos dela estavam bem amarelados. Mais uma coisa começou a me preocupar.

Parecia que tudo o que tínhamos caminhado e vencido até agora estava chegando ao fim. Ao mesmo tempo que eu sabia disso, não deixei de acreditar nem um minuto que mamãe voltaria pra casa. Até que o intensivista de sábado foi mais duro comigo e com papai. Quando questionei sobre os danos cerebrais que a parada cardíaca poderia ter causado, ele foi direto "Bruna, sua mãe não vai voltar pra casa".

Papai chorou muito e eu só queria que o médico me explicasse o que acontecia. Pela experiência dele, era mesmo questão de alguns dias. A infecção ainda era localizada no abdômen, mas o fígado já estava numa situação bem complicada, podendo parar a qualquer momento, e aí era mesmo aguardar que as coisas fossem "parando". Nesse momento pensei no quanto os próximos dias seriam sofridos pra ela. É triste demais saber que você não pode fazer nada além do que já foi feito. Imagina você saber que a pessoa que te deu a vida está indo embora aos poucos, aos pedaços, órgão por órgão, sem que nada pudesse ser feito?

O câncer complicou toda a evolução ou melhora que ela apresentou nesse período. Mamãe esperava ficar boa, mas tudo era muito, muito, muito lento.

Quando chegamos no hospital, no domingo, vi que o nome da mamãe carregava um "*". Logo perguntei o motivo e o segurança disse que a médica iria conversar só comigo e com os familiares de outro paciente. Na hora já veio aquele desespero, mas passou quando uma enfermeira do setor saiu, perguntei se mamãe estava "bem" e ela me pediu pra ficar tranquila. Fiquei.

Dra Paula chegou antes da visita e me chamou. Entramos, sentamos e ela disse "Bruna, fizemos alguns testes na sua mãe ontem a noite e hoje e podemos afirmar com 98% de certeza que ela teve morte cerebral".

segunda-feira, 17 de março de 2014

tratamento intensivo.

Depois da cirurgia, o clima era bem tenso. Dr. Antonio passou por nós pelo corredor e avisou que já iria nos chamar para conversar. Nesse momento o papai já havia chegado ao hospital e minha tia Márcia também.

A conversa foi bem dura. Dr. Antonio explicou o que tinha acontecido, mamãe teve um "desabamento" do intestino, ou seja, o intestino despencou da colostomia e caiu na cavidade abdominal, ficando solto dentro da barriga. A atividade do órgão continuou normal, o que fez com que as fezes se espalhassem por todo o organismo. A situação se tornou bem grave. Mamãe saiu da cirurgia direto pro CTI e fomos vê-la logo depois da conversa. Ela estava lúcida e conversou pouco com a gente. Disse para ela que tudo já estava resolvido, expliquei o que tinha acontecido e pedi que ela ficasse calma pra que tudo pudesse ser resolvido o quanto antes.

Além disso, mamãe teria que passar por várias lavagens da barriga, pois agora ela tinha um quadro de peritonite, que é a inflamação daquela região. Não se sabia muito quantas vezes essas cirurgias seriam feitas, mas era isso que ia salvar a vida dela. Essas lavagens são realizadas para limpar a área da infecção.

Conforme os dias iam passando, as informações ficavam mais claras pra mim. Passava noites lendo artigos sobre todo e qualquer procedimento que era feito com a mamãe. Isso me deixava mais segura para conversar com os médicos e ter perguntas mais pertinentes ao assunto. Dois dias depois ela foi pro centro cirúrgico novamente, para a primeira lavagem abdominal.

Mamãe voltou desse procedimento entubada, não aguentou ficar sem o respirador. No dia anterior ela já tinha apresentado muita tosse e, caso ela permanecesse sem o aparelho, além do risco de ficar sem respirar, ainda forçaria ainda mais a barriga, região infectada.

Passados 15 dias de CTI, o primeiro esquema antibiótico terminou, mamãe permanecia entubada e nos foi pedida uma autorização para fazer a traqueostomia. Ela tinha respondido bem ao tratamento, mas a sepse ainda estava presente. Como não tinha previsão de tirar o respirador, era melhor que fizessem a traqueostomia para que ela tivesse um bem estar melhor. O esperado, agora, era que ela começasse a melhorar.






sábado, 8 de março de 2014

enfermaria 53.

Na enfermaria as coisas ficaram mais tranquilas e tinha a sensação que tudo ia se ajeitar. São oito leitos na sala e uma equipe de enfermagem 24h. Os médicos fazem a visita pela manhã e depois conversam com a família, caso tenha necessidade.

Pedi autorização pra ser acompanhante da mamãe e a enfermagem liberou. Era uma quinta e fiquei com ela no hospital até umas 22h. Estava pronta pra dormir, mas ela, obviamente, não deixou. Sempre se preocupando mais comigo do que com ela. Eu tinha que trabalhar no dia seguinte e ela queria que eu dormisse direito em casa.

Os dias foram seguindo e eu vi a necessidade de ficar com ela naquele momento. Mamãe precisava de mim e se eu estivesse longe não teria como conversar com os médicos e acompanhar a melhora. Pedi 10 dias de férias que tinha no trabalho e fiquei revezando com minha tia e minha vizinha até o dia 17 de fevereiro, uma segunda.

Entre os dias 17 e 18 passei a noite com ela. Mamãe sempre muito ativa, não tava aguentando mais ficar naquela cama. Não encontrava posição pra dormir, passava a noite em claro, não tinha mais rivotril que desse jeito naquela ansiedade de voltar pra casa. No meio da noite ela pediu que fossemos limpar a sacolinha da colostomia - que eu já tinha aprendido a cuidar - e vi que tinha algo estranho, um líquido com uma cor roxa que muito parecia sangue. Voltamos pra cama e fiquei com aquilo na cabeça. Sabia que não era um bom sinal. Chamei a enfermeira, pois mamãe reclamou de dor, e comentei que as fezes estavam com uma coloração estranha. Pela manhã, fomos tomar banho e dessa vez a sacolinha estava completamente cheia de sangue.

Dr. Antônio Mateus é o chefe da cirurgia do hospital. Em um dos primeiros dias da mamãe na enfermaria tivemos uma longa conversa. Ele me explicou a gravidade do tumor, o quanto está avançado e os cuidados que teremos que seguir após a alta. Foi ele que chegou pra ver a mamãe no momento da hemorragia.

Aquilo tudo passa como um filme na minha cabeça. Foram algumas horas de muita tensão. Mamãe perdia muito sangue e já tinha um quadro de anemia, o que me preocupava ainda mais. Tentei manter o controle da situação o máximo possível pra que ela não ficasse ainda mais nervosa. Quando o Dr. Antônio chegou no leito, mamãe falou "Dr, me salva, eu to morrendo!" e ele, numa calma que deve ser característica da maioria dos cirurgiões, ou pelo menos deveria ser, disse "tem ninguém morrendo aqui, dona Eulalia! Fique calma aí".

Sempre soube que mamãe era uma pessoa muito forte pra dor (e pra um monte de outras coisas). Lembro de uma vez, devia ter uns 12 anos, ela teve bursite e sentia uma dor insuportável. Ela chorava na cama e eu, do lado dela, pedia a Deus que a dor fosse em mim, porque eu não queria ver minha mãe sofrer daquele jeito. E naquele momento tenso da hemorragia, perguntei algumas vezes se ela sentia dor, e ela me respondia sempre que não.

Doendo ou não, mamãe foi pro centro cirúrgico pela segunda vez. Uma segunda ida já era programada, pois ela precisava refazer alguns pontos internos que haviam soltado, mas vinha sendo adiado por conta da anemia que ela tinha. Dessa vez era emergencial, então foi levada. Dr. Antônio e Dra Claudia operaram a mamãe por quase três horas.

quarta-feira, 5 de março de 2014

acordei.

Depois de uma noite de não-sono, levantamos e buscamos o que fazer. Mamãe passou a noite no CTI da emergência, chamam aqui de "sala vermelha", e não podia ter acompanhante.  Por volta das 7h, papai já estava no hospital com a malinha dela pronta. Fiquei em casa tentando descansar, mas obviamente não consegui.

Meu corpo parecia fora da órbita. Os passos que eu dava pareciam não comandados por mim. O meu cansaço não era físico, era psicológico. Meu corpo descansou por toda noite que passou, mas minha cabeça não. Toda família me ligava, eu precisava avisar aos mais próximos o que estava acontecendo e, o principal, eu precisava ficar com a minha mãe.

Cheguei no hospital por volta das 10h. Papai ainda não tinha conseguido entrar nem falar com nenhum médico pra saber da mamãe. A entrada na sala vermelha era proibida e passamos alguns minutos até que eu pudesse pensar em como resolver a situação. Fui ao serviço social, expliquei o que acontecia, e consegui ter alguma informação sobre ela - ao menos que estava viva. Eu devia aguardar a médica vir chamar a família pra conversar após a visita. Inclusive eu estaria aguardando até agora.

Existia uma possibilidade - grande - da mamãe sair do local que estava e ir pra enfermaria da emergência ou, ainda pior, pro corredor, já que o hospital estava lotado. Consegui ver um rosto conhecido, um médico que passou por mim algumas vezes no dia anterior, Dr. Luis Fernando, e perguntei se ele poderia me ajudar de alguma forma a ver minha mãe. De pronto, ele me disse que estava muito ocupado, senão iria naquele mesmo momento vê-la pra me dizer a situação, mas que eu poderia entrar pra falar com o cirurgião do plantão.

Nenhum médico me olhava com uma cara boa. Sempre que eu dizia "sou filha da paciente Maria Eulalia", eles poderiam estar sorrindo que a fisionomia mudava e a primeira frase era "o que você sabe da situação da sua mãe?". E foi exatamente assim com o primeiro médico que falei nesse dia. Dr. Gustavo me disse que ela passou a noite muito bem, vinha reagindo melhor que o esperado e que só não liberou a dieta pois ela precisaria completar 24h de cirurgia. Boas notícias, mas ainda tinha uma coisa me incomodando, eu não ia permitir que minha mãe ficasse no corredor do hospital, mesmo sem saber o que fazer.

Vimos a mamãe e disse que ia voltar pra casa porque não poderia ficar ali. Avisei que voltaria mais tarde pra dar um beijo de boa noite. Mais ou menos umas 18h estava novamente no hospital e mamãe não estava mais na sala vermelha. Uma enfermeira passou por mim e disse "ela subiu, está na enfermaria cirúrgica". A Dra Flávia tinha deixado na chefia da cirurgia uma solicitação de vaga, pedindo que a primeira vaga que surgisse na enfermaria fosse da mamãe.














terça-feira, 4 de março de 2014

aquele dia.

Cinco de fevereiro tinha tudo pra ser um dia comum, mas não foi. Minha mãe não estava bem e isso já não era do dia cinco, ou do dia um, ou de algum dia próximo. Isso já era recorrente nos nossos últimos meses.

Poucos filhos - ao menos os que conheço - são tão ligados aos pais, como sou com os meus. E isso não é pretensão minha, é verdade. Nunca quis saber a explicação, mas nesse momento as coisas ficam muito mais claras. Era pra ser assim.

Depois de vários médicos e até um diagnóstico de "cálculo renal", dado por uma médica (brasileira[!!!]), na UPA, depois de um exame de urina, fomos encarar a emergência de um hospital do Estado. Tínhamos uma ultrasonografia que solicitava uma tomografia computadorizada pra complementar o diagnóstico. Mamãe foi atendida, realizou exames de sangue e a tomografia - num total de 10h de espera no hospital. Com o laudo da tomografia em mãos, eu já não cabia mais em mim de tanta ansiedade. Não gostei do que vi ali, embora não tivesse entendido sequer uma linha.

Enquanto aguardávamos o médico nos atender para ver o resultado da TC, mamãe pediu para irmos procurar algo pra comer - estávamos o dia inteiro ali, sem ter comido nada. Sentamos na lanchonete do hospital, pegamos uma água de coco (nada de comer nos agradou) e eu chorei. Mamãe, do alto de toda sua força e proteção que me dá, disse "minha filha, não se preocupe, vai ficar tudo bem. Eu não tenho medo de nada! Só tenho medo se for câncer".

A clínica médica olhou o laudo e pediu para levarmos ao cirurgião da emergência. O caso era pra operação e ela não disse muito mais que isso. Mamãe entrou na sala de sutura já agoniada, mas não pelo que a médica tinha falado, pela vontade de ir logo pra casa. Mesmo com um caso cirúrgico, não imaginamos que não voltaríamos juntas pra casa. Pediu, pelo amor de Deus, que a médica só "desse uma olhadinha" naquele exame, pois não aguentava mais ficar ali. A médica pegou os exames e respondeu que não ia olhar nada daquilo, que antes de qualquer coisa ela ia contar tudo o que tava sentindo. Ali eu chorei.  Chorei porque pela primeira vez, em meses atrás de um atendimento correto, um médico parou pra ouvir o que minha mãe tinha pra dizer. Mamãe me olhou com aquela cara de "para de chorar, garota!" e contou tudo o que sentia praquela mulher, Dra. Flávia Menezes. Depois da história, ela olhou o exame em menos de um minuto e disse "dona Eulalia, nós vamos operar a senhora agora, tá? A senhora tem um tumor no reto, alguns pontos já no fígado, e precisamos abrir pra limpar essa barriguinha".


Eu pedia calma pra mamãe e ela pedia calma pra mim. Éramos eu e ela, uma querendo cuidar mais da outra. Ali eu vi que meu papel tinha mudado e que ela precisava deixar que isso acontecesse. Mamãe era a pessoa mais tranquila daquele hospital. Eu virei a pessoa mais desesperada e em cinco minutos depois a mais forte. Papai chegou atrás da gente justamente na hora que soubemos de tudo. Naquele tempo antes da cirurgia fomos a família mais feliz do mundo simplesmente por estarmos juntos. É estranho dizer felicidade nesse momento, mas sei que seriamos infelizes se um de nós três não estivesse ali naquela hora tão importante.

A cirurgia durou quase 2h, como previsto, e esperávamos a Dra Flávia e a Dra. Adriana virem conversar com a gente. As notícias chatas não pararam por ali. O tumor da mamãe não podia ser retirado, o fígado já vinha bastante comprometido e não nos deram expectativa de cura. Foi feita uma colostomia, sem previsão de retirada, e ela ficaria, no mínimo, uma semana no hospital pra se recuperar. Todo apoio nos foi dado. As médicas nos disseram que todo encaminhamento para o tratamento oncológico seria feito e explicou vários detalhes sobre qualidade de vida do paciente ostomizado. Minha tia e meu primo estavam com a gente e sentimos que não estávamos ali sozinhos.


Era, de longe, a pior noite da minha vida. Com todo o peso que essa frase leva. Digerir tanta informação e entender que vidas inteiras mudaram em algumas horas foi muito complicado. Passamos a noite em claro, eu e papai. Dormi ao lado dele, pois tinha medo, muito medo, e a cada vez que mudava de posição na cama, trocávamos olhares perdidos, sem saber no que se tornaria nossas vidas daquele dia em diante.